Eric Kandel, Nobel de Medicina, conta em livro como Freud o ajudou a desvendar a biologia da memória
Flávio de Carvalho Serpa escreve para a “Folha de SP”
O garoto Eric Kandel pilotava um carrinho de brinquedo, presente do aniversário de nove anos, quando soaram as pancadas na porta da casa. Eram nazistas vienenses, assanhados com anexação da Áustria perpetrada por Adolf Hitler em 1938.Os invasores expulsaram os donos da casa e saquearam tudo, até seus brinquedos. “Lembro as pancadas até hoje” escreve Kandel logo nas primeiras linhas do seu livro “Em Busca da Memória”, lançado no mês passado nos EUA (“In Search of Memory: The Emergence of a New Science of Mind”, editora Norton, 510 páginas, U$27.95).
As pancadas na porta ecoavam na cabeça do jovem Kandel décadas depois tão vivamente que ele resolveu dedicar a vida a explorar como um evento tão fugaz podia ficar gravado de maneira tão indelével.Hoje professor da Universidade Columbia, ele foi o primeiro a desvendar a biologia molecular da transformação das coisas vindas dos sentidos, como as batidas na porta no meio da noite, em memória permanente, ganhando com a proeza o prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina em 2000.
Em Nova York ele ficou amigo de psicanalistas fugidos do círculo freudiano de Viena. A psicanálise, no auge do seu prestígio, apaixonou o jovem Kandel, que via nela “a revelação para entender os processos mentais inconscientes e o determinismo psíquico”, escreve ele. Mas para ser psicanalista, como pretendia, experimentou passar primeiro pela psiquiatria, que exigia formação médica. Aí encontrou seu grande mentor, o neurofisiologista Harry Grundfest, a quem pediu ingenuamente a orientação para localizar fisicamente no cérebro as regiões do id (inconsciente), ego e superego freudianos. Grundfest pacientemente sugeriu objetivos mais modestos: estudar o cérebro metodicamente, neurônio a neurônio. Foi a grande virada na carreira de Kandel. Dos magistrais modelos e princípios da psicanálise, que explicavam tudo num grande esquema da arquitetura da mente, Kandel mergulhou na heresia intelectual do reducionismo.
A maior parte da filosofia, da psicanálise e até mesmo da psiquiatria da época postulavam que a mente era um fenômeno irredutível a partes mais elementares como as células nervosas. Quando Kandel elegeu seu alvo de pesquisas uma lesma marinha, a Aplisia californica, muitos cientistas torceram o nariz, achando que ele estava perdendo seu tempo com a lesma gigante. Kandel abandonou Freud, mas subiu nos ombros de outro gigante: Charles Darwin. Seu principal argumento é que os mecanismos da natureza são altamente conservados, como havia provado o criador da teoria da evolução. A natureza, argumenta Darwin, não cria novos componentes para novas funções a partir do zero. Ela sempre usa o que já tem para novas habilidades.
Mapa da mente
Metodicamente, Kandel fez a engenharia reversa do sistema nervoso da Aplisia: usando eletrodos e sondas químicas ele e sua equipe montaram o diagrama de quase todas as conexões entre os pouco mais de 40 mil neurônios do animal. Os pesquisadores sabiam exatamente que neurônio deveria ser cutucado para que a lesma disparasse o comportamento de botar ovos, por exemplo.
Mas lesmas, como seres humanos, logo esquecem as coisas se elas não forem realmente importantes. O Nobel foi para a descoberta de como uma memória implícita, inconsciente e passageira, pode se tornar definitiva após várias repetições.As descobertas de Kandel só foram possíveis graças aos refinamentos das tecnologias de bisbilhotagem eletrônica. Mas também só poderiam ter acontecido depois da descoberta da estrutura do DNA por James Watson e Francis Crick em 1953. A conexão entre mecanismos genéticos e a formação da memória foi uma descoberta inesperada.
Repressão
Kandel nunca terminou sua formação psicanalítica, apesar da forte carga emocional que o ligara ao círculo freudiano em Nova York. Sua amiga Anna Kris tinha esse nome em homenagem à filha do pai da psicanálise. Ao enveredar para a biologia e para a medicina, começou a ver muitos defeitos na psicanálise.
Ele observa que o próprio Freud tinha delineado “um modelo neuronal de comportamento numa tentativa de desenvolver uma psicologia científica”.
Sigmund iniciou sua carreira como pesquisador em biologia e seu primeiro trabalho científico foi dissecar enguias para descobrir como era a vida sexual delas. Fracasso total: nem Freud nem seus contemporâneos conseguiram ao menos descobrir onde ficavam os órgãos sexuais do bicho.Isso mostra como a instrumentação para o estudo biológico era precária na época.
Mas Freud chegou a intuir a existência das sinapses, as barreiras de troca de informação entre as células nervosas. Não é uma conclusão muito óbvia, pois se concebia a mente, o pensamento e as memórias como coisas fluidas e contínuas. Ele acabou desistindo da tática de atacar o problema de forma reducionista.”
O atraso das ciências do cérebro nos tempos de Freud o levaram a abandonar essa busca e se apoiar num modelo abstrato da mente, a ser encontrado no balanço verbal das experiências subjetivas. Essa dependência tornou-se codificada, em alguns campos, numa dogmática exclusão do processo físico material”, concluiu Kandel.
Negação
À medida que avançava nas suas experiências na América, Kandel finalmente renegou a psicanálise. Assim ele resume sua desilusão no seu novo livro: “Fiquei desapontado ao ver quão pouco progresso a psicanálise tinha feito para se tornar mais empírica no teste de suas idéias… Sentia que a psicanálise estava recuando para uma fase não-científica e, nesse processo, arrastando também a psiquiatria”.
Pior, além de ter esgotado o processo de extrair significados das reclamações dos pacientes, a psicanálise contaminou a psiquiatria e até a medicina com os exageros das idéias de doenças psicossomáticas. “Doenças como a hipertensão, asma, úlceras gástricas começaram a ser encaradas como resultados de conflitos inconscientes.”"Se a psicanálise está satisfeita com sua atual situação, tudo bem” diz.”
Freud será lido como Shakespeare ou Homero, como grande obra de iluminações literárias. Mas se quiser se tornar ciência precisa de uma base empírica. Freud teve inspirações interessantes, algumas das quais agora podem ser testadas pela neurociência. Mas o bebê freudiano não cresceu mais desde 1910″, lamenta.
Apesar disso Kandel ainda considera o edifício freudiano digno de ser levado em conta. Com neurocientistas como António Damásio, Joe LeDoux, Jaak Panksepp, o austríaco ainda se empenha em restaurar o trabalho de Freud participando da Sociedade Internacional de Neuropsicanálise, criada em 2000.
Mas haveria ainda esperanças para uma ressurreição da psicanálise? O próprio Kandel deixa escapar uma razão inconsciente de suas verdadeiras motivações. No último capítulo de seu livro, descreve como ele e sua mulher se tornaram colecionadores inveterados, “para não dizer viciados”, de antigüidades francesas.”
Ao escrever isso começo a suspeitar que fazer essas coleções pode ser uma tentativa de recapturar parte da nossa juventude perdida.”
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